sexta-feira, 25 de abril de 2014

Como construir uma insónia.

O sono parece estar escondido, debaixo de alguma pedra - daquelas que trouxe no bolso, depois do dia vagaroso, carregado de chuva e secretos desejos a nu.
Os segredos que guardavas colhi-os um a um, na vasta costa molhada, para onde tu foges quando eu não estou. Uma imensidão cheia de vielas escuras e lugares incertos, que tu, ansiosamente, procuras. Lá todas as lembranças de mim ficam esquecidas e tu procuras criar novas memórias. As velhas ficam para trás, pois são apenas pedras que guardas no peito, e que te carregam a consciência quando te procuras encontrar em novos lugares. Na imensa costa misturam-se com a areia húmida, quase que invisíveis. Embora não as tenhas escondido, não pensas que tal cenário soçobro seja lugar para se encontrarem pedras. Não imaginas que por acaso, quando caminho perdida, num dia carregado de chuva, já com tantas pedras no regaço de malditas palavras duras, que apanhei numa outra praia tempestuosa, vá tropeçar numa maldita pedra pequenita. Pedra essa que logo reconheço por ter sido minha.
Colhi-as todas. Embora entre os inumeráveis grãos, certamente terá ficado uma meia dúzia mais de calhaus. Talvez esses mais enterrados. Esses que tu sabias que eu nunca veria por estar tão longe de ti.
Depois de um dia de chuva, onde nem uma pedra apanhaste por mim, fiquei tão carregada, que o tempo começou a avançar mais lentamente, sem que lhe conseguisse ver o fim.
As pedras deixei-as no canto da cama, onde a gata se costuma deitar. Nem um vislumbre do maldito sono parece querer ser desenterrado. Talvez o fundo da cama não seja lugar para as pedras... nem tão pouco a cama será lugar para mim.

Talvez seja hora de colher os cacos dos telhados de vidro que hoje parti, porque nesses escombros um ou outro pedaço meu se encontre.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Afonia

Teus lábios dançam
Numa canção vazia,
Sem som algum.

Os teus lábios não dançam comigo
Bailam com um mundo de outros sons
Que eu não sei fazer
E que tu ardentemente anseias conhecer

De longe,
espreitando pela fechadura
vejo a tua luz inquieta
Bruxelante,
à medida que a tua língua se perde
No infinito dos sons
Que te enfeitiçam a boca
E te fazem beijar outras bocas.

Um beijo é também um som,
um tom monocórdico
Ora de paixão e sentimento
Ora de compaixão e lamento

Já não sei como me beijas.
Não consigo escutar esse tom.
É difuso, fica no ar
Bailando longe de mim, na luz
no infinito.

Hoje danço sozinha
Envolta na escuridão da minha boca.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Como construir uma armadilha.

"Pus o pé no lugar errado!" Esse é sempre um bom principio quando nos queremos deixar arrastar num buraco sem fundo. Aí nada nos pode ajudar, a menos que um braço fique também preso à corda que esperava o pescoço. Dessa forma ficamos lá, balouçando violentamente, com o braço oscilando, quase que arrancado da carne, desossado do corpo - pendendo.
Não há nada mais fácil que se deixar apanhar por estes truques fracos, que são tão evidentes, tão mal camuflados pelas folhas secas. Mas se caio é porque a armadilha de lobos do mar funciona também em terras de pó e lama. Não posso permitir que o braço fique pendendo e que a cabeça se enterre no buraco escuro. É fundamental procurar a luz, ou criar a luz com meia dúzia de pauzitos secos. É essencial revirar as folhas mortas e encontrar tesouros de outros tempos no meio das ramagens mortas.
O principal é saber cair na armadilha se um dia a quisermos montar