segunda-feira, 25 de abril de 2011

Gorda.

Olhava-se ao espelho e de imediato subiu pelo cano escuro o sabor amargo do suco gástrico que lhe aconchegava o estômago.
A imagem que tinha diante de si não era a que ela esperava ver, pois a grande força com que dava cada passo na rua, jamais poderia ser suportada por aquele ser disforme que lhe parecia ser ela, que ali se lhe apresentava como sendo a sua imagem no vidro cheio de manchas de humidade e de outros vapores que ali costumavam pairar.
Ainda assim era clara a imagem, da qual os seus olhos não se queriam afastar. Era a imagem do tempo que passara sem ela querer dar por isso. Do tempo que lhe penetrou no torso esguio e o tornou disforme, carregado de pesados fardos de carne, como se ali tivessem sido postos ao total acaso. Esse mesmo tempo entrou desenfreado pelos seus seios tímidos e doces, deixando-lhe uma aparência bestial, tal a vaca que pastou durante meses a fio para engordar e alimentar uma família por um ano inteiro.
Não percebera, não sentira o tempo, que lhe parecia não ter sido mais que breve, mas que ali, diante do espelho, não a deixava caminhar determinada como todos os dias fazia. Agora sentia-se uma vítima de violação, desprotegida e feia, que não tivera forças para lutar quando a sacudiu violentamente, contra a pedras que transportava consigo, e lhe mudou a imagem que via no espelho. A imagem que fora para ela um tesouro, e hoje não era mais que um desejo enraivecido de voltar para trás.

domingo, 24 de abril de 2011

Como construir um Esgoto.

Quando nem o destino parece ser um conceito sólido, no qual exista um pedaço firme onde é possível lançar as mãos e ficar presa por meia dúzia de fiozinhos invisíveis, toda a terra resvala sob os meus pés. Com ela arrasta alcatrão e pó, muito pó. Diria mesmo cotão. Uma amálgama de lixo que me envolve e me sufoca, naquelas horas em que corre a brisa gelada da solidão. Estico o braço para procurar algo para me aquecer mas do entulho acumulado de meses de eternas saudades só recupero pedaços meio desfeitos de uma passagem que fizeste por mim. São pequenos estilhaços de recordações atiradas sem dó contra as paredes, contra os muros que foste construindo; aqueles muros que lutaste arduamente por manter em pé, mesmo quando me esmagavam, tornando pequenino o espaço que eu tinha para te amar. Respirar não parecia importante, pois se sustivesse o ar talvez arranjasse mais espaço, só um bocadinho mais de espaço, para aquele sentimento descabido que me latejava no peito.
Porém, a dor que me destruiu não te causou pesar algum. E dos muros fizeste casas, e dessas casas vilas e cidades. Essas que hoje crescem e se transformam sobre o pó, o lixo e a merda. Sobre mim.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Avô João.

Três mulheres esperam impacientemente, na sala que vira tantas alegrias acontecer. Sentadas em torno da mesa, que, com o tempo, começava a balouçar ao mais ínfimo movimento, mantendo-se, contudo, hirta e resistente, aos pratos fartos que suportava, aos prantos desesperados que se apoiavam naqueles braços, nas noites em branco, preenchidas pelos seus bramidos enraivecidos. Nunca fora uma pessoa fácil de lidar. Embora aparentasse ser uma figura pacata, quando se exaltava os trovões soavam e estremeciam na sua garganta. Era também rezinga e mau tom, com um prazer extremo em desfazer as convicções sádias dos pequenos, que noutro tempo correram pela mesma sala onde, hoje, as três mulheres esperavam. Aquela sala que vira o Natal passar tanta vez, que agora se confundia com os aniversários e os almoços de Sábado. Todos esses, em que ele levava a pequenita pela mão, não voltaram a acontecer; perderam-se com os dias que passaram no calendário pendurado na parede, num Sábado qualquer, de uma página já arrancada. Ela pensava agora nesses que se perderam, recordando conversas das quais já não se lembrava e os passos que pareciam imensos, quando os seus pés pequenitos pulavam alegremente até à casa onde nascera e se criara, para um almoço de Sábado. Porém, os seus pés já não pulam, e não são mais pequeninos; os seus pés já não perdem os sapatos de fivela nas bancadas do circo, concretizando o seu espectáculo, tão próprio, que ele, o seu herói, protagonizara. Esses pés batiam agora, impacientemente, no chão, no silêncio da sala mal iluminada. Além do toque-toque do sapato, o silêncio carregava também o nervoso miudinho que as mulheres não conhecem, não compreendem, e com o qual não querem lidar. Afinal são elas que detêm todo o poder no momento crucial da existência humana, são elas que controlam e dominam os preciosos momentos da origem do ser. E é nesses momentos que Eles esperam, na sala ao lado, descobrindo as vicissitudes dos momentos que não passam, aprendendo a lidar com tão complexo sentimento de espera, que abençoa todos os nascimentos, que o amor humano traz a este mundo. Esse sentimento ele conhecera com a palma da sua mão, esperando pelos seus filhos e netos. Numa família pequena, mas tão cheia de força, que já tanto passara, ele resistira sempre, como a mesa, onde, agora, as mulheres da sua vida se apoiavam, esperando; aprendendo, como ele, a lidar com esse mesmo sentimento, que torna o ar da sala pesado. O ar do amor humano que cresceu e ganhou asas. Neste momento, as três mulheres, as três gerações de mulheres que lhe preencheram o tempo, as maleitas e as alegrias; elas não sabem se ele vai voar para longe, para o céu que vê da janela do quarto do hospital, junto da janela que ilumina a sua cama. Por isso esperam, impacientemente.