Deixo-me escorregar para dentro da banheira, agora cheia de água fria, já sem espuma. Deixo as minhas costas nuas deslizar na porcelana rachada, rasgando a pureza da carne morena que me envolve. A água fria fica então vermelha, mas continua gelada, e eu continuo a afundar-me no vazio daquela banheira transbordante. A água já me cobre o pescoço, e o sentimento de certeza, de dever cumprido pulsava na minha garganta. Mergulhar na água doce de uma acolhedora banheira, no recanto de uma casa de banho qualquer, está certo. Tantos outros o fazem. De olhos fechados fica mais fácil um corpo nu deixar-se cair nas profundezas. A água toca-me suavemente os lábios, e talvez seja este o momento para fechar os olhos. Não quero ver o tempo a passar à minha frente quando estiver prestes a bater no fundo da banheira. O breu total é assim, um par de olhos fechados; não faz diferença alguma. Simplesmente deixo-me afogar mais uma vez. Afinal, quando a banheira ficar vazia, o corpo nu ainda lá estará, deitado, jazendo. Mas já não serei eu, sou apenas mais uma.
Hoje tive medo de ser quem sou. Simplesmente saí de casa e senti todos os olhos do passeio, da estrada, da sala cravados nas minhas costas. Diferentes hoje, mas só eu é que sabia disso. Contudo continuei com medo dos olhares inquisidores, do dedo da vergonha bem na direcção do meu nariz pequenino. Num egoísmo franco e claro, continuei com medo, a caminha rapidamente para evitar olhos conhecidos, para evitar mostrar os meus olhos, tão normais, às pessoas normais, num receio infinito da diferença que nos dividia. Ou que, eventualmente, podia dividir. Este sentimento mau guardou, no sotão do lugar onde vive, todos os casos clínicos e sociais de diferenças que abalaram o mundo, que se fizeram unas na sua individualidade, e, num sofrimento perene, fizeram do mundo um lugar melhor. Talvez seja esse o meu medo; não sei como o fazer sozinha.
Ainda me lembro de ti Nos passos que refaço Num caminho de volta. Sigo por entre as casas Agora tão cheias de vida, de luz Que outrora pareciam nem estar lá Pois o caminho Que fazia guiada pela tua mão Desenrolava-se sob os meus pés Só para nós.
Hoje eu vi bem o cão A ladrar furiosamente Naquela casa escondida Vi, ainda, na ponte Dois corpos unos, numa tarde de Verão que suavam, abrasados pelo Agosto penetrante nas peles morenas.
Vi na ponte caminhando, apenas. Pensei chamá-lo Num ensejo tão esbatido Para que, de repente, tal tronco Se virasse para trás E ganhasse vida.
Dos meus lábios Saiu, então, um murmúrio Numa palavra vazia Tão cheia de nada E de coisa nenhuma Um trinado triste Imperceptível E tu não te viraste Continuaste a andar a meu lado O suor continuou a escorrer nas tuas costas E nas nossas mãos Ainda dadas.
Ando com medo de escrever. Talvez se o escrever se torne real. Se o escrever talvez acabe toda esta quimera estranha que me envolveu, que ainda hoje não sei se me envolveu, que talvez não me tenha envolvido.