terça-feira, 24 de maio de 2011

Espectros.

"OSVALD: Eu não te pedi para viver. E que espécie de vida é esta que tu me deste? Não a quero! Tira-ma!"

Henrik Ibsen

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Fácil.

Deixo-me escorregar para dentro da banheira, agora cheia de água fria, já sem espuma. Deixo as minhas costas nuas deslizar na porcelana rachada, rasgando a pureza da carne morena que me envolve. A água fria fica então vermelha, mas continua gelada, e eu continuo a afundar-me no vazio daquela banheira transbordante.
A água já me cobre o pescoço, e o sentimento de certeza, de dever cumprido pulsava na minha garganta. Mergulhar na água doce de uma acolhedora banheira, no recanto de uma casa de banho qualquer, está certo. Tantos outros o fazem.
De olhos fechados fica mais fácil um corpo nu deixar-se cair nas profundezas. A água toca-me suavemente os lábios, e talvez seja este o momento para fechar os olhos. Não quero ver o tempo a passar à minha frente quando estiver prestes a bater no fundo da banheira. O breu total é assim, um par de olhos fechados; não faz diferença alguma.
Simplesmente deixo-me afogar mais uma vez. Afinal, quando a banheira ficar vazia, o corpo nu ainda lá estará, deitado, jazendo. Mas já não serei eu, sou apenas mais uma.

domingo, 22 de maio de 2011

Como construir um Mundo Melhor.

Hoje tive medo de ser quem sou. Simplesmente saí de casa e senti todos os olhos do passeio, da estrada, da sala cravados nas minhas costas. Diferentes hoje, mas só eu é que sabia disso. Contudo continuei com medo dos olhares inquisidores, do dedo da vergonha bem na direcção do meu nariz pequenino. Num egoísmo franco e claro, continuei com medo, a caminha rapidamente para evitar olhos conhecidos, para evitar mostrar os meus olhos, tão normais, às pessoas normais, num receio infinito da diferença que nos dividia. Ou que, eventualmente, podia dividir. Este sentimento mau guardou, no sotão do lugar onde vive, todos os casos clínicos e sociais de diferenças que abalaram o mundo, que se fizeram unas na sua individualidade, e, num sofrimento perene, fizeram do mundo um lugar melhor. Talvez seja esse o meu medo; não sei como o fazer sozinha.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Bairro Norton de Matos

Ainda me lembro de ti
Nos passos que refaço
Num caminho de volta.
Sigo por entre as casas
Agora tão cheias de vida, de luz
Que outrora pareciam nem estar lá
Pois o caminho
Que fazia guiada pela tua mão
Desenrolava-se sob os meus pés
Só para nós.

Hoje eu vi bem o cão
A ladrar furiosamente
Naquela casa escondida
Vi, ainda, na ponte
Dois corpos unos,
numa tarde de Verão
que suavam, abrasados pelo Agosto
penetrante nas peles morenas.

Vi na ponte caminhando, apenas.
Pensei chamá-lo
Num ensejo tão esbatido
Para que, de repente,
tal tronco
Se virasse para trás
E ganhasse vida.

Dos meus lábios
Saiu, então, um murmúrio
Numa palavra vazia
Tão cheia de nada
E de coisa nenhuma
Um trinado triste
Imperceptível
E tu não te viraste
Continuaste a andar a meu lado
O suor continuou a escorrer nas tuas costas
E nas nossas mãos
Ainda dadas.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Envoluta.

Ando com medo de escrever. Talvez se o escrever se torne real. Se o escrever talvez acabe toda esta quimera estranha que me envolveu, que ainda hoje não sei se me envolveu, que talvez não me tenha envolvido.