segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Como construir uma Estrada.

Dei um passo.
As dores que penetraram o meu corpo, quando um número, bem grande, de músculos, numa perfeita harmonia, ergueu do chão as patorras monstruosas desse corpo inerte e frio, jamais transparecerão na tinta, nas palavras. Nunca uma equipa, tão complexa e rica em ligações e contracções, havia dilacerado toda uma corrente nervosa. Chegou rapidamente ao ponto mais horrendo do universo; a caixinha negra de todas as dores, um espaço quase invisível do cérebro humano, do meu cérebro humano. Uma nulidade que guarda nela todos os suores frios dos pesadelos, todas as gotas de sangue espalhadas na rua, e todas as lágrimas infames que abençoaram o nascimento da humanidade. É um sitio demasiado triste para se pensar nele. E quando o passo quis surgir e ser passo, foi este espaço que despertou! Acordou de um profundo sono, que vez alguma se revelara. Queimava, assim, a sola do pé descalço, a perna fria e aquela pobre alma, que eu nem sabia que existia. Parecia que a construção de um cenário infernal se dava ali mesmo, num passo, naquele pé disforme e cru, onde as mais viscerais dores humanas se erguiam e apoderavam de mim.
Não pretendo, de maneira alguma, ganhar a compaixão do mundo que me rodeia, antes pelo contrário! Mostro como da dor e do pranto, pode renascer a luz. Pois, após um passo, aquele passo, surgiu outro passo. Que também doeu! Contudo, não havia barreiras diante de mim; o mundo era tão Real como a dor, e nada o poderia mudar. Mais que conformismo cresceu uma coragem, um surto de liberdade brava e louca que me levou a perceber que as dores nada eram, quando comparadas com a magia de um Mundo debaixo dos meus pés nus.
Dei mais um passo e segui pela estrada fora.

domingo, 30 de janeiro de 2011

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Náusea.

Um fogo brando
Prolifera vagarosamente
Em busca da luz,
do ar que o alimenta.
No túnel escuro
Soturno
Procura alcançar uma saída
Para que da raiva ardente
Que nas chamas viscerais nasceu
Nada reste.

No ar, que o envolve
Impelido pelo asco amargo
Dança, serpenteia.
E do fogo vivo,
Farto,
Ficaram manchas no chão,
Nas paredes,
E nos cantos da boca lívida.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Satisfaz-te.

Só um pedaço
Não mais te poderia dar.
O contentamento é vão e fugaz
Bramas por mais
Algo mais que te preencha
Não mais te poderia dar.
Porém és fera mordaz
E tuas garras penetrantes
Cravam-se no peito que te amou.
Rasgam a carne quente
Do regaço que te teve
Do abraço que susteve
Um só suspiro
Duas lágrimas
E mais um par de dores.
No abismo profundo que criaste
Jamais ouvirás o eco
Da voz doce que te falou
Quando na tormenta perdias o sono
E chovia,
Na alma e nos olhos
Que cegos ficaram de insatisfação.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Como construir um Convento.

Sozinha. Aliás, com ela própria. E com Ele. Não é preciso mais ninguém, para consumar tão bendito momento, pelo qual ela ansiou durante um par de horas lentas, arrastadas à força no relógio de parede. É pecaminoso, é infernal. Grande e molhado. Não precisava de mais ninguém; nenhum par de braços funcionaria tão bem como o par que ela detinha. Uns braços tão seguros de si, magros, mas habituados a carregar, pela escadaria fora, o mais variado tipo de mercadorias. Sem dúvida que todo o trabalho vale é pena, nem que seja por momentos como aquele.
Completamente merecido. Um desejo visceral que Ele não explica, pois não há grito algum que o traduza num sussurro. Não há suspiro que consiga conter em si o bramido animalesco, encarcerado no momento seguinte, no instante decisivo, que ela agora não consegue controlar de tão obcecada que está com a gota de saliva que se forma no canto direito do seu lábio inferior perturberante e doce. A inevitabilidade é mais que óbvia, contudo, ela é casta e jovem. Não são qualidades tão comuns nos dias que correm, que possam ser lançadas na escuridão da última cela do corredor estreito. E talvez seja esse o seu fado, a sua maldição. Ou simplesmente o milagre de uma santa qualquer que se lembrou de espirrar sangue no preciso instante, no dito momento, e lhe pôs a mão por baixo, ou na consciência, e de alguma maneira não a deixou mais sozinha.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Auto-Biografia

"Ouvir a música e perceber o que é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é só uma cantiga."
Rosa Lobato Faria

domingo, 2 de janeiro de 2011

Jantar.

Janelas negras que outrora reflectiam a luz da lareira acesa. A luz de um sorriso que levantava a mesa. Nessa mesa de sonhos, onde jaziam os restos da fome que alimentara, eu ainda permanecia, olhando a toalha de pano cru, com rosáceas bordadas em tons de Azul.
Na toalha tinha ficado a mancha do vinho que se derramou, que transbordou do copo de pé alto, de cristal. Descuido seu, dela, pois rira a bandeiras despregadas, enquanto o enchia. E dois ou três grãos de arroz também haviam ficado para trás. Esvaziamos os pratos. As ossadas, metidas num balde pesado de latão enferrujado, seriam o manjar do cão, que já não latia, que já nem casota de pedra tinha. Fora aquela a refeição, a melhor da minha vida, a última que guardo na memória. Tive várias depois dessa, mas em nenhuma outra a luz daquele sorriso brilhara mais que a lareira acesa. A lareira que, hoje, não existe mais.