quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Autumn Waltz.

A ponta do seu pé descalço deixou de sentir o chão. Foi quando ele a apertou com mais força contra o seu peito, e se pôde misturar com o seu cheiro. As batidas que guardavam dentro de si próprios, sobrepuseram-se ao compasso marcado pela concertina.
Valsavam agora num ritmo único, inimitável, longe daquela madeira suja, cheia de pequenas pedras e de suor. O vazio virou palco, virou pista, infinito. Valsavam num tempo só, infinito. Não estavam mais rodeados de tantos outros corpos em movimento anti-horário.
Não mais sentiam o calor sufocante daquela noite de Outono.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Bogart.

Sinto o teu cheiro
Ainda ficou algum
Preso na narina esquerda
De quando me agarraste
Ao me abeirar do infinito.
Chegaste o teu peito quente
Junto à minha orelha
Que te ouviu os ruídos internos
Numa busca insana pela bomba vital.
Terias uma batendo louca
Guardando os segredos
Que eu procurava saber.
Contudo, a orelha mal a ouvia,
ainda que batesse mais rápido
por eu estar ali
a deixar o meu cheiro escondido
na tua narina esquerda.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Cama.

Era quente o ar que tocava o seu pescoço. O desejo em forma de vento. Tu dormias, não sabias que o desejo se materializava na tua respiração e agora lhe beijava a nuca e os cabelos. Não conseguia adormecer, pois aquele calor era perturbador; aquele vento leve penetrava os seus pensamentos, mais ainda do que o facto de estar deitada ao teu lado. Como se todos os sentidos tivessem adormecido e todo o perpétuo movimento do mundo se centrasse na pele quente do teu pescoço. Tu ainda não sonhavas, pois se o fizesses certamente não estarias tão sossegado, tão perto daquele corpo estranho na tua cama. Os sonhos que costumavas ter não eram nada como a tua respiração. Eram mudos e quedos, difusos. Aquele arfar era o oposto, especialmente porque sabia a ânsia , a paixão. Aquela que o sono trazia, mas que escondias nos sonhos e na Realidade, por não saberes como respirar sem aquele ardor no peito, quando caminhavas sobre a terra das promessas ou pelo mundo onírico da noite. Enquanto isso, os olhos dela fixavam a escuridão, onde devia estar a porta do quarto, a saída daquela dúvida infame que a assombrava de encanto. Não queria que aquele sono começasse ou acabasse. Estava perdida no meio da tempestade tropical que a deixava quente e molhada. Não queria que Tu parasses de respirar, mas ansiava sufocar-te com o desejo que lhe queria saltar dos lábios e ficar contigo naquele para sempre, num vendaval maravilhoso de ensejo e loucura.
Foi quando te viraste para o outro lado e entraste num sonho Azul.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Preciso de uma sola de sapato, para tocar o chão negro da noite. Não quero calcar as estrelas, que me picam os pés! Que nenhum doce passo de dança me traga de novo à terra molhada; não quero descer, nunca mais!

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

L'amour.

Um beijo e um queijo
que ele trazia debaixo do braço
Quando descia a calçada
para a ver sentada
Num cafézinho simpático
Com toalhas xadrez
A esvoaçar na esplanada.
Na quina de uma rua qualquer
Num quadrado de casas
Alinhadas sobre a hipotenusa
Daquela cidade mágica
Que era Paris.

A Paris dos olhos fechados,
dos auscultadores nos ouvidos
Berrando
Concertinas baratas
Cantando
Melodias suaves.

A Paris que me pediste
Quando te trouxe um queijo
E aquele beijo.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Cromos para troca.

Quero uma tristeza
Uma pequena, para mim.
Daquelas rápidas de empacotar
Só para voltar a sentir
E ir embora.
Remexi no arrumo escuro
Em busca de alguma esquecida
Só encontrei pedaços,
tristezas carcomidas,
desencantos podres.
Nada que me deixasse infeliz.
Só réstias de prantos mal calados.
Algumas lágrimas sacudidas
Tristeza inteira,
Composta Completa
Bruta,
carregada de pesar
Não mais consegui achar.

Tenho dias banais a mais,
Alguém quer trocar?

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O Deus das Pequenas Coisas

"Quando Khubchand, o seu amado rafeiro de dezassete anos, cego, calvo e incontinente, decidiu encenar uma morte lenta e miserável, Estha cuidou dele durante essa provação final como se a sua própria vida dependesse disso. Nos últimos meses de vida, Khubchand, que tinha a melhor das intenções e a pior das bexigas, arrastava-se até ao janelo aberto na parte inferior da porta para lhe dar acesso ao quintal, empurrava-o com a cabeça e urinava tremulamente um líquido amarelo brilhante do lado de dentro. Depois, com a bexiga vazia e a consciência limpa, erguia para Estha os olhos verdes opacos que pareciam poças escumosas incrustadas no seu crânio grisalho, e cambaleava de regresso à sua almofada húmida, deixando marcas molhadas no soalho. Quando Khubchand estava a morrer na sua almofada, Estha podia ver a janela do quarto reflectida nos testículos lisos e púrpura do cão. E o céu mais além. E, uma vez, um pássaro cruzando-o em pleno voo. Para Estha - impregnado do cheiro de rosas vermelhas, ensanguetado pela lembrança de um homem despedaçado - o facto de algo tão frágil e tão insuportavelmente delicado ter sobrevivido, de lhe ter sido consentido existir, era um milagre. O voo de um pássaro reflectido nos testículos de um cão velho. Fazia-o sorrir com um sorriso aberto."

Arundhati Roy

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Aquece-me.

Corri para ti. Como tantas outras vezes. De braços bem abertos, esperando o calor que vulgarmente me envolvia. Por vezes esse calor arrepiava-me, fazia-me corar e fazia-te sorrir. Por vezes rias e eu corava mais ainda. Era bonito, tornava-nos pequeninos, como duas crianças que se arreliam depois de uma tarde de brincadeira, suados e plenos.
Quando era menina não abraçava ninguém. O calor nada me dizia. Era má. Gostava de ratos e de chuva. Nunca fui uma princesa grega, ria-me dessas moçoilas bem postas que se aqueciam no ouro e nas tintas brilhantes que as adornavam. Cresci no frio, e no frio me fiz Mulher.
Quando tu surgiste foste um fogo que me queimou de imediato. Senti a pele a rasgar, o sangue a afluir à carne crua que tocavas e espalhar-se no chão, deixando um rasto de loucura por onde passei desse dia em diante.
Ensinaste-me o calor. Contigo soube o que era o suor, quando na minha cama me achei sobre o imenso sal, que me banhava as costas nuas.
Essa dicotomia, gelo e calor unos em ti e em mim, fazia-me ansiar a tua presença, o teu toque.
Continuei a correr e, quando me lancei às chamas, caí. Não eras tu que lá estavas, e o gelo daquela pele cinzenta não me envolveu, deixando-me, simplesmente, cair.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Coelho Branco II

Todo e cada indivíduo deste planeta passa, nem que seja por breves instantes, a tormentosa dor de perder alguém. Perder para sempre alguém. Todos passam por aquelas habituées, as costumeiras questões que se resumem ao maldito: "Porquê?"
Não que valha coisa alguma; Deus, ou outro qualquer que se ocupe desta matéria, fará ouvidos moucos a tal desesperada interrogação e fica a dor petulante, saltitando e espezinhando os restos amargurados de quem fez a pergunta estúpida.
Todo o indivíduo sabe que, eventualmente, a hora mais certa da Humanidade chega. Mais; tem a certeza que a dor que a morte carrega consigo, para onde quer que vá, atinge todo e cada ser humano que caminhe, conscientemente, a passos largos, para o seu destino, o mais garantido que alguma vez terá.
Quando chega essa presença, essa dama malvada, porém exímia cumpridora de funções profissionais, a dor é tão grande, tão maior que a certeza, que não há espaço para as duas coabitarem no mesmo coraçãozito, que se torna tão apertado, sumido, acabando uma delas por ceder. E, normalmente, é a certeza. Porque a dor, essa fica para sempre.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Coelho Branco

Hoje senti o teu cheiro
Jamais o poderia esquecer.
Mas senti-lo
Entre as pelosidades nasais
Deixou-me zangada
Como quando me mordias
Quando me tratavas mal.
Deixou-me zangada
Por já não estares aqui
Por não te poder sentir
Não só nos pêlos do nariz
Mas sentir-te quente.
No meu peito,
nas minhas mãos.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Como construir um Grito.

Nascemos todos a gritar. É preciso, uma necessidade de sobrevivência inata que rompe os pulmões nos primeiros segundos da existência. Contudo é breve este bradar e rapidamente nos aconchegam no peito materno, retornando ao silêncio que nos manteve confortavelmente resguardados durante os meses de gestação humana.
Assim, no silêncio começamos a crescer, sempre com a meigura das palavras pequeninas, temendo vozes graves que reconhecemos como figuras temerosas e barulhentas; começamos a gostar do embalar em vez da multidão que nos canta o nosso primeiro "parabéns a você...". Esse mar de gente que entoa palavras grandes, melodiosas, assusta qualquer pequeno ser que goste de silêncio, com certeza, será por este motivo, que os bichos do mato não festejam os seus aniversários!
Cresce-se um pouco mais e na nossa vida insignificante despertam em nós caras, cores, palavras. Aqui e ali reina a agitação e a desordem; ninguém se sente efectivamente confortável nesta situação, contudo procura-se ficar por cima: Grita-se. E como que a dizer que chegámos ao mundo para ficar, os pulmões rasgam-se uma vez mais, como no primeiro momento da existência. É legítimo! Queremos só marcar o nosso lugar no
compassado movimento do mundo, queremos afirmar uma banal posição à qual ninguém se ousará a opor.
Com o passar do tempo essa posição vai ficando menos vincada; há cada vez mais horizontes para alcançar e mais lugares onde hastear a bandeira; é preciso ganhar espaço e agir... Por isso, grita-se mais um pouco!
Os sentimentos e as pessoas mudam connosco, pelo que os gritos que outrora não passavam de clamores à vida, passaram a ser de comum uso; vandalizados, diria mesmo! Simplesmente o grito tomou o lugar de conversas, de música e de poesia. O grito passou a ser utilizado para vingar, acima de qualquer outro que se nos oponha! A posição fica marcada, é um facto, porém nem sempre vale de muito, pois todos os outros também desenvolveram este culto, este poder; também eles sabem gritar. Não se ganha nada e o grito perde-se no vazio, podendo por vezes acertar em quem menos espera. Inicia-se, deste modo, uma corrente malvada, que encadeia mal-dizeres de um lado com injurias do outro, que se fundem no calão e na disputa verbal. Cada facção puxa cada ponta da corrente bradando cada vez mais alto, procurando forças nos decibeis descompensados, que apenas consomem o fôlego de quem não sabe perder uma causa ou, tão simplesmente, a Razão.
Perde-se, assim, a motivação do grito, porque sem Razão qualquer temível bramido não assada de um assobio do vento, não passa de uma janela que bate, mas não quebra. Cai na indiferença qualquer palavra feia que tenha sido dita ou tenha ficado por dizer.
Sobra somente o eco, uma vibração oca, daquilo que foi grito, daquilo que foi dor. Morre. E com a morte some o grito. Fica só a mágoa de quem por cá, com a Razão toda, ficou.

sábado, 24 de setembro de 2011

A Viagem do Elefante

"Costuma-se dizer que as paredes têm ouvidos, imagine-se o tamanho que terão as orelhas das estrelas."

José Saramago

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Quiosque.

Um dia peguei em Ti
E escrevi-te
Numa folha em branco
Salpicada de café.
Era de manhã,
Como deves ter percebido
E nada mais poderia fazer.

Aquele dia já estava perdido
Para Ti
Naquele papel
Um insignificante risco
Preto
Adornado e confuso,
sem começo e sem fim.
Como tu.
Ali ficaste
Para que todos te lessem
Qual ordinária notícia
No jornal de Domingo.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

D. Sebastião.

Agora estou apenas vazia. Já não há tristeza, finalmente a épica luta contra as recordações que teimavam em investir ferozmente terminou! Já não me lembro de Ti. Descobri isso quando procurei nos despojos de guerra um último beijo ou um último sorriso sincero. Não estavam lá, nem debaixo das carcaças apodrecidas do prazer e do amor-próprio. Talvez tivessem sumido com o nevoeiro, também! Assim não voltarão para atormentar um novo dia glorioso e puro, envolto em paz!
Ainda assim, no meio de tanta harmonia desfeita, nos escombros sorridentes do cataclismo sentimental mais tenebroso de toda uma era histórica, eu, que hasteei a bandeirola branca, fiquei, finalmente, vazia.
Mais do que em paz, mais do que descansadinha, fiquei sem coisa alguma para sentir. Nem o som da tua voz zangada. Vazio, onde ecoa somente a minha voz e as memórias tormentosas que não revelam vestígios do que foste. Bem procuro batalhar um pouco, indagar num confronto com escudeiros, cavalos, obstáculos indiferentes que não me oferecem resistência alguma. Anseio neles bater com força, berrar bem alto e soltar tudo aquilo que não levaste contigo quando desapareceste! Procuro preencher-me de vida, de outras vidas, para que o vazio não se pareça tanto contigo.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A Velha.

Uma sucessão de imagens. É a luz no canto escuro da sala.
Não se ouve som algum além da ventoinha que corta brutalmente o vento quente de Agosto, que entra pela janela aberta. Ela continua a olhar o negro da noite. A parede vazia, onde outrora pendia o quadro que ele pintara naquela mesma sala; uma outra janela que lhe alegrava o dia, tornando-o Azul. Assim, como todos os oceanos, que se partem e recuam na costa, tendem a ser. Mesmo que numa pequena janela de tela amarelecida pelos anos que a viram virgem e pura, na esperança matrimonial pelas tintas, que a guiariam pela mão no mundo real. Num mundo de casas cheias de luz, onde faltam janelas de sonhos.
Porém, ela não ouve o bater das ondas, nem sente o cheiro da maresia pela manhã, que se libertava da pequena janela. Paira no ar o cheiro da roupa velha, das porcelanas empoeiradas, dos remédios que se acumulam na cómoda suja. Já não precisa de sonhar a esta hora, naquele dia, naqueles dias. Basta-lhe encher a cabeça, mergulhando na luz que emana do canto da sala, da televisão.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

e se.

"E se" é um analogismo vazio. Não existe. simplesmente não existe. Não há nenhum e se na vida. Esta vai correndo de uma forma só, daquela, aquela mesmo, e nenhuma outra! Supor que algo podia ter acontecido de outra forma é perder tempo precioso, num nada que se cria e ganha raízes no e se. O que acontece tem que acontecer, simplesmente. Mais que destino, sina, fado, coincidência... O que acontece agora (já!) é consequência do que aconteceu no momento anterior.
As borrachas podem ser muito enganadoras quando trazidas para esta problemática! Contudo, estas também só existem porque foram uma consequência de um acto. Simplesmente tinham que existir e aqui estão elas hoje, sempre prontas no auxílio das caligrafias ilegíveis.
E se está por isso banido do meu vocabulário, até uma qualquer entidade inventar uma máquina de viajar no tempo, económica, cómoda e segura.
Se for como a borracha, talvez tenha que esperar alguns séculos.

domingo, 17 de julho de 2011

O Guardador de Rebanhos

"Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar..."

Alberto Caeiro

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Insónias.

Constantemente me apaixono pela mão que me toca levemente no ombro. Se ficar lá poisada, encontro para tal mão um aro para o dedo anelar e um resto da vida e para sempre muito felizes.
Quando fecho os olhos, além da mão que teima em roçar ao de leve enquanto me distraio com os minutos do tempo, vejo-os num misto de sorrisos e olhares brilhantes. São os que passaram a correr e pouco ou nada ficaram que mais sorriem! Talvez pelo penar fatídico que suportaram quando as mãos se tocaram e se deram. Já os outros, só se lhes vê o olhar; brilhante de raiva, de ódio, de desamor. São esses que ainda percorrem o meu corpo com aquela mão, que outrora se apoiou no meu ombro. Essa mão procura-me como se aquela nunca tivesse sido eu. Riem-se do ser apaixonado, ao qual invadem o peito e profanam os mais secretos momentos da sua existência. Nada posso fazer, patético ser, espantalho caído, vazio e triste. Procuro abrir os olhos, já baços de lágrima.

Encaro o tecto alto; e ouço a sua voz ao longe, sem que mão alguma se poise no meu ombro. Contudo é essa voz que me ajuda a adormecer devagar, enquanto entoa uma melodia doce. Os olhos secam, e eu adormeço, apaixonada, uma vez mais.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Xadrez.

Tinhas nas tuas mãos a jogada seguinte. Bastava pensar um pouco, olhar bem fundo nos olhos que brilhavam diante de ti, encantados com a tua exímia postura. Um cavalheiro, um Homem de palavra, honesto, no entanto, como ela, um jogador.
O mais pequeno erro de cálculo poderia por em causa todo o pequeno império de vitórias morais que vieste a construir à custa de muito sofrimento e humilhação. Afinal, a cordialidade e o savoir faire serão sempre os grilos falantes que se agitam e estremecem no teu ombro, quando aspiras sair um bocadinho do eixo direitinho que está mesmo por baixo do teu nariz.
Contudo jogas. Nem era vício, pois o jogo ocasional nunca matou ninguém; embora o jogo seja sempre um jogo. Há sempre vitória e derrota. Perder é controverso; ganhar é bom. Recebe-se a vitória de braços bem abertos, peito inchado e sorriso bem rasgado. No fundo, todos sabem perder, mas ninguém sabe como perder.
E ali, era contra ela que jogavas... Ou jogarias com ela? Para todos os efeitos estava em ti a decisão, pois a jogada seguinte era tua! Era só pensar um pouco. Para a assistência não parecia assim tão difícil, enquanto os olhavam ávidos por resultados, por vitórias e derrotas. Até que simplesmente jogaste. Assim, como se tratasse de um movimento involuntário, moveste, com toda a tua certeza, aquela peça negra, e ela perdeu.

E tu ganhaste.

domingo, 10 de julho de 2011

Calótipo

Naquele dia
havia nuvens no céu
e o céu não era Azul.
Não era dia
Não era noite.
Era céu, somente.
A estrada desaparecia
E os seus pés roçavam o céu.
Ela continuava a caminhar
Mas já não sabia onde estava
Perdida no retrato do horizonte
Onde as nuvens
Passavam pontualmente
Num céu só mente,
Intenso,

Mediúnico.
Desejava para sempre
Aquele céu ali
Numa parede do infinito
Levemente inclinado,
Para a aconchegar no ombro nu
No seu ombro nu.

Adormeceria
E não saberia onde estava
Não saberia do ombro
Não sentiria a pele morena
Suada.
As nuvens eram mais densas
Agora mais frias.
Mas o céu, aquele céu
Não era noite
Não era dia.
Era céu.
Sem mente,

Só ela.

domingo, 3 de julho de 2011

Era uma vez uma grainha.

Era uma vez, bem antiga, um homem que cultivou uma grainha maldita, que se lhe tinha enfiado num dente. Cultivou; como quem diz atirou-a para o chão e deixou que a terra se revoltasse com chuvas e ventos e cobrisse a pobre semente, que já vivera aventuras mais que suficientes para a sua curta existência! Da grainha brotou um caulezito verdejante, suportado por uns tentáculos fininhos, que se prendiam à terra como se a ferrassem sedentos. O homem, que entretanto não fora muito longe, dormira um pouco, e espalhara mais um sem número de grainhas pelas imediações, reparou naquele pedacinho de verde e, como se escutasse uma voz longínqua, não lhe fez mal algum, dedicando-se a observar o movimento daquele estranho ser, tão pequeno. E daquele pequeno nada, surgiu um verdejante arbusto, com mais frutos e grainhas. O homem aprendeu, com o tempo, a cultivar. Gostava de ver crescer aqueles pauzinhos verdes, dos quais brotavam uns braços largos, que embalavam o vento que passava. Melhor de tudo; tirava-lhe aquele incómodo remexer de barriga, que se não fosse atendido o arrastaria para a total escuridão. Se o homem soubesse o que é ser bonito talvez achasse bonito aquele ser, aquele tempo de crescimento mansinho. Mas o homem só ouvia a sua barriga ruidosa e não tinha tempo mansinho para pensar no sol a bater nas folhas verdes. Apenas ansiava o fruto, e do fruto as grainhas, para cultivar mais plantinhas verdes.
Um dia descobriu que podia cultivar outras sementes. Só a carne não crescia do chão! Tudo o resto parecia alimentar-se do próprio caminho que os seus pés faziam; tinha todo o sentido continuar a caminhar e procurar mais sementes e nova terra. Por isso, já não o primeiro homem, mas outro que se lhe seguiu, achou terras distantes, e mais sementes para cultivar. Descobriu, ainda, que se deitasse à terra madeira e palha secas um abrigo cresceria. Decidiu cultivar a construção e o seu próprio esforço, que regados com o seu suor, ganhavam frutos muito rapidamente!
E assim, vários homens foram aprendendo a cultivar e a aperfeiçoar a técnica, com as suas próprias mãos e mais tarde com máquinas. Até que o correr do tempo nos trouxe a Ele. Ele que já não precisava de comida da terra, pois esta vinha embalada. Já não precisava de esforço, pois as casas eram regadas a dinheiro, juros e prestações. Já não usava mãos nem máquinas, só a sua própria mente para alcançar tudo o que outrora fora cultivado. Aparentemente, era um homem de negócios, nada tinha de agricultor ou entendido de plantações. Contudo, todos os dias cultivava o medo. O medo de andar na rua, de perder, de não ser respeitado, de não se encontrar no meio de outros viveiros e plantações de despeito. Esse medo dava uns frutos pequeninos, mas muito abundantes, que caíam directamente no quintal do seu amigo, que os sacudia para os filhos, que os levavam, na mochila, para a escola. Esses frutos têm umas grainhas quase invisíveis, mas suficientemente selvagens para se entranharam na terra, nos dias que passam, e para crescerem cada vez mais fortes. Os prados de flores dão lugar ao culto do medo e da descrença. O homem já sabe o que é ser bonito, mas já não o pode ver, nem quando o vento sopra e embate nas vigas de betão.
O homem ainda hoje não sabe cultivar uma flor.

sábado, 2 de julho de 2011

Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.

"A cozinha me transporta para distantes doçuras. Como se, no embaciado dos seus vapores, se fabricasse não o alimento, mas o próprio tempo. Foi naquele chão que inventei brinquedo e rabisquei os meus primeiros desenhos. Ali escutei falas e risos, ondulações de vestidos. Naquele lugar recebi os temperos do meu crescer."

Mia Couto

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Odiar-te é como escrever uma lista de supermercado; há sempre mais uma coisa a acrescentar.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Dicionário.

Estou sempre demasiado ocupada a ver se passo despercebida, a procurar não fazer erro algum. Não quero parecer estúpida, então não faço. Estou sempre a tentar escutar os risos de escárnio que teimo em construir no silêncio; para quê? Não está lá ninguém de qualquer das formas! Posso berrar e chorar, ninguém se vai interessar! E se parecer estúpida, se não passar de um velho palhaço triste a tentar levar com mais uma, de tantas, tartes de nata na cabeça? Paciência! Não vai ficar registado em nenhum livro de capa negra, de grandes folhas amarelecidas, que guardam nelas todas as idiotices e acontecimentos absurdos que um determinado ser humano estúpido comete ao longo da sua vida!!! Abraça o erro Mulher! Parecer estúpida só é estúpido quando realmente não se é. Agora quando uma carapucinha bem catita se encaixa perfeitamente na cabeçorra?





estúpido/a
adj.
1. Que não tem suficiente inteligência nem delicadeza de sentimentos.
2. Que revela estupidez.
3. Muito desagradável.
4. Que enfada e aborrece.
5. Que não tem razão de ser.
6. Grosseiramente erróneo.
s. m. 7. Indivíduo estúpido.

sábado, 11 de junho de 2011

Ordinária.

Ouço a noite
É ela que me diz que já acabou
Conta-me os minutos à solidão
E ri-se baixinho quando choro.
É a maldade pura
Conjecturada nas estrelas
Que hoje não brilham.
Apetece-me berrar com a noite
Mandá-la para o inferno
E deixar no seu lugar o Nada
Deixar o buraco
Na trama do tempo
Que o fuso horário fiou.

Quem se ri agora?

terça-feira, 24 de maio de 2011

Espectros.

"OSVALD: Eu não te pedi para viver. E que espécie de vida é esta que tu me deste? Não a quero! Tira-ma!"

Henrik Ibsen

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Fácil.

Deixo-me escorregar para dentro da banheira, agora cheia de água fria, já sem espuma. Deixo as minhas costas nuas deslizar na porcelana rachada, rasgando a pureza da carne morena que me envolve. A água fria fica então vermelha, mas continua gelada, e eu continuo a afundar-me no vazio daquela banheira transbordante.
A água já me cobre o pescoço, e o sentimento de certeza, de dever cumprido pulsava na minha garganta. Mergulhar na água doce de uma acolhedora banheira, no recanto de uma casa de banho qualquer, está certo. Tantos outros o fazem.
De olhos fechados fica mais fácil um corpo nu deixar-se cair nas profundezas. A água toca-me suavemente os lábios, e talvez seja este o momento para fechar os olhos. Não quero ver o tempo a passar à minha frente quando estiver prestes a bater no fundo da banheira. O breu total é assim, um par de olhos fechados; não faz diferença alguma.
Simplesmente deixo-me afogar mais uma vez. Afinal, quando a banheira ficar vazia, o corpo nu ainda lá estará, deitado, jazendo. Mas já não serei eu, sou apenas mais uma.

domingo, 22 de maio de 2011

Como construir um Mundo Melhor.

Hoje tive medo de ser quem sou. Simplesmente saí de casa e senti todos os olhos do passeio, da estrada, da sala cravados nas minhas costas. Diferentes hoje, mas só eu é que sabia disso. Contudo continuei com medo dos olhares inquisidores, do dedo da vergonha bem na direcção do meu nariz pequenino. Num egoísmo franco e claro, continuei com medo, a caminha rapidamente para evitar olhos conhecidos, para evitar mostrar os meus olhos, tão normais, às pessoas normais, num receio infinito da diferença que nos dividia. Ou que, eventualmente, podia dividir. Este sentimento mau guardou, no sotão do lugar onde vive, todos os casos clínicos e sociais de diferenças que abalaram o mundo, que se fizeram unas na sua individualidade, e, num sofrimento perene, fizeram do mundo um lugar melhor. Talvez seja esse o meu medo; não sei como o fazer sozinha.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Bairro Norton de Matos

Ainda me lembro de ti
Nos passos que refaço
Num caminho de volta.
Sigo por entre as casas
Agora tão cheias de vida, de luz
Que outrora pareciam nem estar lá
Pois o caminho
Que fazia guiada pela tua mão
Desenrolava-se sob os meus pés
Só para nós.

Hoje eu vi bem o cão
A ladrar furiosamente
Naquela casa escondida
Vi, ainda, na ponte
Dois corpos unos,
numa tarde de Verão
que suavam, abrasados pelo Agosto
penetrante nas peles morenas.

Vi na ponte caminhando, apenas.
Pensei chamá-lo
Num ensejo tão esbatido
Para que, de repente,
tal tronco
Se virasse para trás
E ganhasse vida.

Dos meus lábios
Saiu, então, um murmúrio
Numa palavra vazia
Tão cheia de nada
E de coisa nenhuma
Um trinado triste
Imperceptível
E tu não te viraste
Continuaste a andar a meu lado
O suor continuou a escorrer nas tuas costas
E nas nossas mãos
Ainda dadas.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Envoluta.

Ando com medo de escrever. Talvez se o escrever se torne real. Se o escrever talvez acabe toda esta quimera estranha que me envolveu, que ainda hoje não sei se me envolveu, que talvez não me tenha envolvido.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Gorda.

Olhava-se ao espelho e de imediato subiu pelo cano escuro o sabor amargo do suco gástrico que lhe aconchegava o estômago.
A imagem que tinha diante de si não era a que ela esperava ver, pois a grande força com que dava cada passo na rua, jamais poderia ser suportada por aquele ser disforme que lhe parecia ser ela, que ali se lhe apresentava como sendo a sua imagem no vidro cheio de manchas de humidade e de outros vapores que ali costumavam pairar.
Ainda assim era clara a imagem, da qual os seus olhos não se queriam afastar. Era a imagem do tempo que passara sem ela querer dar por isso. Do tempo que lhe penetrou no torso esguio e o tornou disforme, carregado de pesados fardos de carne, como se ali tivessem sido postos ao total acaso. Esse mesmo tempo entrou desenfreado pelos seus seios tímidos e doces, deixando-lhe uma aparência bestial, tal a vaca que pastou durante meses a fio para engordar e alimentar uma família por um ano inteiro.
Não percebera, não sentira o tempo, que lhe parecia não ter sido mais que breve, mas que ali, diante do espelho, não a deixava caminhar determinada como todos os dias fazia. Agora sentia-se uma vítima de violação, desprotegida e feia, que não tivera forças para lutar quando a sacudiu violentamente, contra a pedras que transportava consigo, e lhe mudou a imagem que via no espelho. A imagem que fora para ela um tesouro, e hoje não era mais que um desejo enraivecido de voltar para trás.

domingo, 24 de abril de 2011

Como construir um Esgoto.

Quando nem o destino parece ser um conceito sólido, no qual exista um pedaço firme onde é possível lançar as mãos e ficar presa por meia dúzia de fiozinhos invisíveis, toda a terra resvala sob os meus pés. Com ela arrasta alcatrão e pó, muito pó. Diria mesmo cotão. Uma amálgama de lixo que me envolve e me sufoca, naquelas horas em que corre a brisa gelada da solidão. Estico o braço para procurar algo para me aquecer mas do entulho acumulado de meses de eternas saudades só recupero pedaços meio desfeitos de uma passagem que fizeste por mim. São pequenos estilhaços de recordações atiradas sem dó contra as paredes, contra os muros que foste construindo; aqueles muros que lutaste arduamente por manter em pé, mesmo quando me esmagavam, tornando pequenino o espaço que eu tinha para te amar. Respirar não parecia importante, pois se sustivesse o ar talvez arranjasse mais espaço, só um bocadinho mais de espaço, para aquele sentimento descabido que me latejava no peito.
Porém, a dor que me destruiu não te causou pesar algum. E dos muros fizeste casas, e dessas casas vilas e cidades. Essas que hoje crescem e se transformam sobre o pó, o lixo e a merda. Sobre mim.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Avô João.

Três mulheres esperam impacientemente, na sala que vira tantas alegrias acontecer. Sentadas em torno da mesa, que, com o tempo, começava a balouçar ao mais ínfimo movimento, mantendo-se, contudo, hirta e resistente, aos pratos fartos que suportava, aos prantos desesperados que se apoiavam naqueles braços, nas noites em branco, preenchidas pelos seus bramidos enraivecidos. Nunca fora uma pessoa fácil de lidar. Embora aparentasse ser uma figura pacata, quando se exaltava os trovões soavam e estremeciam na sua garganta. Era também rezinga e mau tom, com um prazer extremo em desfazer as convicções sádias dos pequenos, que noutro tempo correram pela mesma sala onde, hoje, as três mulheres esperavam. Aquela sala que vira o Natal passar tanta vez, que agora se confundia com os aniversários e os almoços de Sábado. Todos esses, em que ele levava a pequenita pela mão, não voltaram a acontecer; perderam-se com os dias que passaram no calendário pendurado na parede, num Sábado qualquer, de uma página já arrancada. Ela pensava agora nesses que se perderam, recordando conversas das quais já não se lembrava e os passos que pareciam imensos, quando os seus pés pequenitos pulavam alegremente até à casa onde nascera e se criara, para um almoço de Sábado. Porém, os seus pés já não pulam, e não são mais pequeninos; os seus pés já não perdem os sapatos de fivela nas bancadas do circo, concretizando o seu espectáculo, tão próprio, que ele, o seu herói, protagonizara. Esses pés batiam agora, impacientemente, no chão, no silêncio da sala mal iluminada. Além do toque-toque do sapato, o silêncio carregava também o nervoso miudinho que as mulheres não conhecem, não compreendem, e com o qual não querem lidar. Afinal são elas que detêm todo o poder no momento crucial da existência humana, são elas que controlam e dominam os preciosos momentos da origem do ser. E é nesses momentos que Eles esperam, na sala ao lado, descobrindo as vicissitudes dos momentos que não passam, aprendendo a lidar com tão complexo sentimento de espera, que abençoa todos os nascimentos, que o amor humano traz a este mundo. Esse sentimento ele conhecera com a palma da sua mão, esperando pelos seus filhos e netos. Numa família pequena, mas tão cheia de força, que já tanto passara, ele resistira sempre, como a mesa, onde, agora, as mulheres da sua vida se apoiavam, esperando; aprendendo, como ele, a lidar com esse mesmo sentimento, que torna o ar da sala pesado. O ar do amor humano que cresceu e ganhou asas. Neste momento, as três mulheres, as três gerações de mulheres que lhe preencheram o tempo, as maleitas e as alegrias; elas não sabem se ele vai voar para longe, para o céu que vê da janela do quarto do hospital, junto da janela que ilumina a sua cama. Por isso esperam, impacientemente.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Nota.

Eu odeio-te. Não é tão melodioso como eu amo-te, nem tão poderoso quanto eu quero-te. Contudo, é uma frase engraçada. Gosto de ó sem o acento. Parece que alguém lhe arrancou aquela sobrancelha esquinada, deixando-o assim despido, só vagamente camuflado pela pronuncia bem aberta do som que tipicamente lhe pertence. Porém, a parte mais airosa da frase é o te. Nutrir ódio (ai que este não veio depilado!) é algo intrinsecamente inexplicável. Mas um te, um te assim tão banal, deixa clara a bela merda que o incógnito dono do te fez. Curioso como algo tão recôndito no nosso pacote sentimental aparece assim tão delicadamente para abençoar o te. Cómico, diria mesmo!

sexta-feira, 25 de março de 2011

Memorial (in Memorium)

"Os homens são anjos nascidos sem asas; é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer."

José Saramago


[mas não digam ao anjo que tenho saudades de voar com ele]

quarta-feira, 23 de março de 2011

Na cama não se fala sozinho.

- Hoje ela não está e dou por mim a falar sozinho.
Faz-me falta o declive que ela provoca nessa ponta tão distante, que se forma todas as noites do outro lado da cama, na beira mais recôndita do colchão, onde só me é permitido o acesso em sonhos! E só quando ela o permite.. Nos próprios sonhos, diga-se! Ela é mais manipuladora a sonhar do que quando está acordada! No sono dos vivos existem demasiadas as efemérides a interferir no seu pequeno espectáculo, que ela encena e protagoniza. Assim, nesse mundo dos sonhos o seu único espectador tem que aplaudir tão entusiasticamente, que quando ela se baixar na reverência final, uma multidão erudita surgirá, vibrando, na escuridão das suas próprias pálpebras.
Mas hoje ela não está. O palco de todos os sonhos está vazio e frio, embora eu tenha comprado o bilhete para mais uma sessão. Talvez, se eu fechar os olhos e tentar dormir, eu consiga produzir um espectáculo tão fantástico como o dela. Talvez, se eu fechar os olhos e tentar dormir, ela aplauda e os papeis se invertam. Talvez se eu..

quinta-feira, 17 de março de 2011

Circo dos Sentidos.

A luz incidia sobre aquele corpo, que pendia no alto da estrutura de madeira esculpida. Tudo o resto, o mais ínfimo milímetro de atmosfera pesada, era escuridão. Ainda assim, brilhavam na penumbra milhares de olhares conferindo àquele negrume uma tonalidade prateada que tremia intermitentemente sob o balançar doce da luz incidente no torso nu.
Eram esses olhares crus que lhe transferiam toda a força que naquelas noites infinitas lhe nascia das entranhas, crescia e lhe rolava pela boca, num bramido tão suave , que quase apagava o brilho da escuridão.
Nem o pulsar dos milhares de pulmões parecia penetrar aquele silêncio imenso, pois as suas palavras, tão claramente articuladas, enchiam o espaço, com ondas, com um oceano sonoro, que se perdia na treva dos mil olhos, agora fechados, que escutavam.
Ela continuava pendendo, como se voasse, simplesmente. E na imagem onírica que se formava nas cabeças invisíveis que submissas a ouviam, o corpo nu, perfeito, ganhava asas e pairava numa escuridão tão Azul como uma tarde de Verão.
Ela continuava num outro mundo, só dela.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Hemorragia.

Quando rebenta
O aperto quente no ventre
Crava no peito
Os fragmentos da memória
Do que eras Tu
Do que foste em mim.

Começam as hemorragias internas
Que esguicham o sangue
Que outrora subia à extremidade
Quando me viravas de ponta-cabeça
E te rias feliz
Do falso pranto ladino
Que o teu abraço envolvia

Seca,
de tanto sangrar
de tanto chorar,
não me resta mais Abraço algum
Senão o da incerteza
Do teu olhar que me despreza
E que já não brilha em mim.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Tempo Perdido.

Penso nas horas
que já nada significam.
Aquelas em que te abeiraste de mim
Na condição fraterna
De um forte ente querido.
Essas horas que não estão no relógio
Nunca estiveram no relógio.
Não moveram ponteiros,
Nem permaneceram penduradas na parede.
Essas horas foram nossas,
Surgiram e pereceram em nós
Tão fugazmente
Que nem nos lembraram de as agarrar.
Assim,
escaparam, foram ser tempo livre!
E nós,
Que nem pensamos em tê-lo,
ficamos perdidos num momento.
Que não é dia, nem hora, nem tempo.
É uma janela para o infinito
Onde ainda estamos,
onde o tempo voa, lá fora.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Na cama não se fala de políticas de desenvolvimento.

- Não consigo dormir.
- Então?
- O mundo, hoje, pareceu-me maior!
- E isso tira-te o sono?
- Claro que tira. É muito preocupante viver num mundo maior.
- Porque há-de ser isso?
- Porque num mundo em que não vês o limite do horizonte não podes construir estradas, pois não sabes se algum dia elas terão fim, e não se pode a andar infinitamente a espalhar asfalto no nada, é um desperdício de tempo e de recursos.
- Oh, mas as estradas não são as vias mais importantes. Enquanto duas almas pertencerem uma à outra, o caminho formar-se-á naturalmente, para além de qualquer limite.
- O que se passa hoje contigo? Duas almas? Como as nossas?
- Pode ser.. Vá, vira-te para o outro lado e dorme!

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Se numa noite de Inverno um viajante.

"Há tanta gente, mais jovem ou mais velha que tu, que vive à espera de experiências extraordinárias - dos livros, das pessoas, das viagens, dos acontecimentos, de tudo o que o amanhã guarda em si. Tu não. Tu já aprendeste que o melhor que se pode esperar é evitar o pior."
Italo Calvino

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Memo.

Não sei bem qual o caminho que tomam. Surgem assim, como uma curta-metragem estrangeira, difusa e confusa, numa língua imperceptível. Também o cenário não lembra ao diabo; tem cor, muita cor. Brilhantes cores.
A éburnea luz ao fundo, ilumina cada prega do vestido Azul, que lhe balouçava ao vento, num contraste digital, alegando descaradamente qualquer batota que lhe passasse pela cabeça. Era essa mesmo que as deixava transparecer como água , uma após a outra: A do vestido Azul, a do dia solarengo em que passearam pela cidade, e aquela outra, numa tarde de chuva, na cama meia desfeita, partilhando uma caneca de chocolate ou, talvez, de café com leite (uma vez que não consegue precisar o sentido do paladar!).
E não param de surgir, cada vez mais intensas, mais brilhantes, deixando os corpos suados contrastar com os lençóis lavados, tão brancos como a luz que deles emana!
São as memórias perdidas, que se encontraram para a convenção anual de memórias achadas, que um dia foram dias longos, onde a luz era realidade, e não uma mera estratégia fotográfica e tecnológica, para tocar fundo nos olhos cansados de enganos.
Por isso mesmo não lhe chegou ao lábios o sabor do café, que partilharam naquela boca só. Por isso não ouviu o carro a apitar, quando passou por eles na colina de asfalto que tantas vezes percorreram. Por isso ele não está mais aqui.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Frio.

É cinza escuro
O aperto que trago
Uma tempestade minha
Inquieta.
Começa
E arrasta com ela o vazio
Que ficou de um outro Verão.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Todo o sentido do mundo que construí embaraçou-se num novelo de lã Azul, no fio do telefone e nas meadas de cabelo que ainda te tapam as orelhas.
Toda a plenitude de uma caneca de chá, entornou-se e embebeu esta papa de fios e linhas e sentidos que nunca me deste. Era agora uma moamba negra, que derramada na alcatifa fofa, tinha ainda um aspecto mais pestilento e ensopado.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Eram três vezes e meia.
A primeira não correu como devia pois todas as personagens falharam o compromisso e foram chegando! Quando se lida com personagens de contos, temos que estar preparados para estas eventualidades, mas quando marcamos para as três horas e o primeiro gnomo Azul chega perto das três e um quarto para montar as luzes, nem podemos dar o benefício do quarto de hora académico.
A segunda vez já foi mais composta. Depois do grande sermão que todos ouviram todos fizeram um esforço extra para chegar à hora marcada. Tal facto não deveria ter uma conotação negativa, mas, para personagens infantis, o cumprimento das regras nunca é visto com bons olhos! Contudo, o pessoal dos adereços tinha regressado de férias na semana anterior e as malas estavam um caos. Faltava a tiara e os sapatos da princesa, e ela, claro, não aceitava nenhuma bandolete que tivesse menos de vinte diamantes e dez rubis. Não havia cogumelos mágicos, só uns enlatados e laminados, que não serviam nem para paragem de autocarro dos pequenos gnomos! E as fadas? Pobres coitadas que não tinham pós mágicos, e andavam atarantadas, de asinhas murchas, para trás e para a frente, sem saber muito bem como ajudar, pois, sem aquelas purpurinas encantadas, os seus pequenos cérebros pareciam não funcionar! Para não falar de uma infinidade de utensílios de higiene e beleza, que deveriam ter ficado no armazém, e sem eles nenhum urso ou sapo mágico iria tomar partido daquela história! Assim não se podia trabalhar, por isso todos foram mandados embora, menos o pessoal dos adereços. Esses ficaram a fazer uma listagem do material em falta, de modo a providenciarem uma solução na vez seguinte!
Na tradição oral é dito que à terceira é de vez, e todos estavam bastantes expectantes com este número tão especial. Por isso, à hora prevista todos estavam presentes! Nos bastidores todas as escovas e pentes estavam numerados e organizados por espessura da escovagem, os vestidos pendurados pela ordem das cores do arco-íris, com a jóia que lhe correspondia numa pequena caixa de cartão colorida com o número correspondente ao vestido, e todas as casas e meios de transporte se encontravam brilhantes e lustrosos, prontos para serem habitados ou meramente utilizados.
Só faltava mesmo começar! Contudo, e quando todos já estavam na sua posição, prontos a seguir em frente e a originar o mais belo conto infantil do mundo, eis que se notou uma falha; o narrador?! Todos ficaram vermelhos e roxos, alguns mantiveram-se verdes, de frustração!! Ninguém conseguiu compreender como é que, depois de tantas tentativas, a peça mais importante falhava daquela forma.
Porém, a porta gemeu, e da fresta surgiu a testa alva e um nariz bonacheirão, com uns óculozinhos verdes de massa na ponta. Era Ele, cujas bochechas avermelhadas denunciavam a vergonha por ter faltado às suas responsabilidades depois de tanto ter ralhado e tanto ter trabalhado para que o conto andasse para a frente, quando o motivo fora apenas um cafezinho.
Eram, assim, três vezes e meia...

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Como construir uma Estrada.

Dei um passo.
As dores que penetraram o meu corpo, quando um número, bem grande, de músculos, numa perfeita harmonia, ergueu do chão as patorras monstruosas desse corpo inerte e frio, jamais transparecerão na tinta, nas palavras. Nunca uma equipa, tão complexa e rica em ligações e contracções, havia dilacerado toda uma corrente nervosa. Chegou rapidamente ao ponto mais horrendo do universo; a caixinha negra de todas as dores, um espaço quase invisível do cérebro humano, do meu cérebro humano. Uma nulidade que guarda nela todos os suores frios dos pesadelos, todas as gotas de sangue espalhadas na rua, e todas as lágrimas infames que abençoaram o nascimento da humanidade. É um sitio demasiado triste para se pensar nele. E quando o passo quis surgir e ser passo, foi este espaço que despertou! Acordou de um profundo sono, que vez alguma se revelara. Queimava, assim, a sola do pé descalço, a perna fria e aquela pobre alma, que eu nem sabia que existia. Parecia que a construção de um cenário infernal se dava ali mesmo, num passo, naquele pé disforme e cru, onde as mais viscerais dores humanas se erguiam e apoderavam de mim.
Não pretendo, de maneira alguma, ganhar a compaixão do mundo que me rodeia, antes pelo contrário! Mostro como da dor e do pranto, pode renascer a luz. Pois, após um passo, aquele passo, surgiu outro passo. Que também doeu! Contudo, não havia barreiras diante de mim; o mundo era tão Real como a dor, e nada o poderia mudar. Mais que conformismo cresceu uma coragem, um surto de liberdade brava e louca que me levou a perceber que as dores nada eram, quando comparadas com a magia de um Mundo debaixo dos meus pés nus.
Dei mais um passo e segui pela estrada fora.

domingo, 30 de janeiro de 2011

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Náusea.

Um fogo brando
Prolifera vagarosamente
Em busca da luz,
do ar que o alimenta.
No túnel escuro
Soturno
Procura alcançar uma saída
Para que da raiva ardente
Que nas chamas viscerais nasceu
Nada reste.

No ar, que o envolve
Impelido pelo asco amargo
Dança, serpenteia.
E do fogo vivo,
Farto,
Ficaram manchas no chão,
Nas paredes,
E nos cantos da boca lívida.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Satisfaz-te.

Só um pedaço
Não mais te poderia dar.
O contentamento é vão e fugaz
Bramas por mais
Algo mais que te preencha
Não mais te poderia dar.
Porém és fera mordaz
E tuas garras penetrantes
Cravam-se no peito que te amou.
Rasgam a carne quente
Do regaço que te teve
Do abraço que susteve
Um só suspiro
Duas lágrimas
E mais um par de dores.
No abismo profundo que criaste
Jamais ouvirás o eco
Da voz doce que te falou
Quando na tormenta perdias o sono
E chovia,
Na alma e nos olhos
Que cegos ficaram de insatisfação.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Como construir um Convento.

Sozinha. Aliás, com ela própria. E com Ele. Não é preciso mais ninguém, para consumar tão bendito momento, pelo qual ela ansiou durante um par de horas lentas, arrastadas à força no relógio de parede. É pecaminoso, é infernal. Grande e molhado. Não precisava de mais ninguém; nenhum par de braços funcionaria tão bem como o par que ela detinha. Uns braços tão seguros de si, magros, mas habituados a carregar, pela escadaria fora, o mais variado tipo de mercadorias. Sem dúvida que todo o trabalho vale é pena, nem que seja por momentos como aquele.
Completamente merecido. Um desejo visceral que Ele não explica, pois não há grito algum que o traduza num sussurro. Não há suspiro que consiga conter em si o bramido animalesco, encarcerado no momento seguinte, no instante decisivo, que ela agora não consegue controlar de tão obcecada que está com a gota de saliva que se forma no canto direito do seu lábio inferior perturberante e doce. A inevitabilidade é mais que óbvia, contudo, ela é casta e jovem. Não são qualidades tão comuns nos dias que correm, que possam ser lançadas na escuridão da última cela do corredor estreito. E talvez seja esse o seu fado, a sua maldição. Ou simplesmente o milagre de uma santa qualquer que se lembrou de espirrar sangue no preciso instante, no dito momento, e lhe pôs a mão por baixo, ou na consciência, e de alguma maneira não a deixou mais sozinha.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Auto-Biografia

"Ouvir a música e perceber o que é que lá vem escrito, porque a melodia, como o vento, tem uma alma e é preciso descobrir o que ela esconde. Depois é uma lotaria. Ou me cantam maravilhosamente bem ou tristemente mal. Mas há que arriscar e, no fundo, é só uma cantiga."
Rosa Lobato Faria

domingo, 2 de janeiro de 2011

Jantar.

Janelas negras que outrora reflectiam a luz da lareira acesa. A luz de um sorriso que levantava a mesa. Nessa mesa de sonhos, onde jaziam os restos da fome que alimentara, eu ainda permanecia, olhando a toalha de pano cru, com rosáceas bordadas em tons de Azul.
Na toalha tinha ficado a mancha do vinho que se derramou, que transbordou do copo de pé alto, de cristal. Descuido seu, dela, pois rira a bandeiras despregadas, enquanto o enchia. E dois ou três grãos de arroz também haviam ficado para trás. Esvaziamos os pratos. As ossadas, metidas num balde pesado de latão enferrujado, seriam o manjar do cão, que já não latia, que já nem casota de pedra tinha. Fora aquela a refeição, a melhor da minha vida, a última que guardo na memória. Tive várias depois dessa, mas em nenhuma outra a luz daquele sorriso brilhara mais que a lareira acesa. A lareira que, hoje, não existe mais.