segunda-feira, 28 de março de 2011

Nota.

Eu odeio-te. Não é tão melodioso como eu amo-te, nem tão poderoso quanto eu quero-te. Contudo, é uma frase engraçada. Gosto de ó sem o acento. Parece que alguém lhe arrancou aquela sobrancelha esquinada, deixando-o assim despido, só vagamente camuflado pela pronuncia bem aberta do som que tipicamente lhe pertence. Porém, a parte mais airosa da frase é o te. Nutrir ódio (ai que este não veio depilado!) é algo intrinsecamente inexplicável. Mas um te, um te assim tão banal, deixa clara a bela merda que o incógnito dono do te fez. Curioso como algo tão recôndito no nosso pacote sentimental aparece assim tão delicadamente para abençoar o te. Cómico, diria mesmo!

sexta-feira, 25 de março de 2011

Memorial (in Memorium)

"Os homens são anjos nascidos sem asas; é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer."

José Saramago


[mas não digam ao anjo que tenho saudades de voar com ele]

quarta-feira, 23 de março de 2011

Na cama não se fala sozinho.

- Hoje ela não está e dou por mim a falar sozinho.
Faz-me falta o declive que ela provoca nessa ponta tão distante, que se forma todas as noites do outro lado da cama, na beira mais recôndita do colchão, onde só me é permitido o acesso em sonhos! E só quando ela o permite.. Nos próprios sonhos, diga-se! Ela é mais manipuladora a sonhar do que quando está acordada! No sono dos vivos existem demasiadas as efemérides a interferir no seu pequeno espectáculo, que ela encena e protagoniza. Assim, nesse mundo dos sonhos o seu único espectador tem que aplaudir tão entusiasticamente, que quando ela se baixar na reverência final, uma multidão erudita surgirá, vibrando, na escuridão das suas próprias pálpebras.
Mas hoje ela não está. O palco de todos os sonhos está vazio e frio, embora eu tenha comprado o bilhete para mais uma sessão. Talvez, se eu fechar os olhos e tentar dormir, eu consiga produzir um espectáculo tão fantástico como o dela. Talvez, se eu fechar os olhos e tentar dormir, ela aplauda e os papeis se invertam. Talvez se eu..

quinta-feira, 17 de março de 2011

Circo dos Sentidos.

A luz incidia sobre aquele corpo, que pendia no alto da estrutura de madeira esculpida. Tudo o resto, o mais ínfimo milímetro de atmosfera pesada, era escuridão. Ainda assim, brilhavam na penumbra milhares de olhares conferindo àquele negrume uma tonalidade prateada que tremia intermitentemente sob o balançar doce da luz incidente no torso nu.
Eram esses olhares crus que lhe transferiam toda a força que naquelas noites infinitas lhe nascia das entranhas, crescia e lhe rolava pela boca, num bramido tão suave , que quase apagava o brilho da escuridão.
Nem o pulsar dos milhares de pulmões parecia penetrar aquele silêncio imenso, pois as suas palavras, tão claramente articuladas, enchiam o espaço, com ondas, com um oceano sonoro, que se perdia na treva dos mil olhos, agora fechados, que escutavam.
Ela continuava pendendo, como se voasse, simplesmente. E na imagem onírica que se formava nas cabeças invisíveis que submissas a ouviam, o corpo nu, perfeito, ganhava asas e pairava numa escuridão tão Azul como uma tarde de Verão.
Ela continuava num outro mundo, só dela.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Hemorragia.

Quando rebenta
O aperto quente no ventre
Crava no peito
Os fragmentos da memória
Do que eras Tu
Do que foste em mim.

Começam as hemorragias internas
Que esguicham o sangue
Que outrora subia à extremidade
Quando me viravas de ponta-cabeça
E te rias feliz
Do falso pranto ladino
Que o teu abraço envolvia

Seca,
de tanto sangrar
de tanto chorar,
não me resta mais Abraço algum
Senão o da incerteza
Do teu olhar que me despreza
E que já não brilha em mim.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Tempo Perdido.

Penso nas horas
que já nada significam.
Aquelas em que te abeiraste de mim
Na condição fraterna
De um forte ente querido.
Essas horas que não estão no relógio
Nunca estiveram no relógio.
Não moveram ponteiros,
Nem permaneceram penduradas na parede.
Essas horas foram nossas,
Surgiram e pereceram em nós
Tão fugazmente
Que nem nos lembraram de as agarrar.
Assim,
escaparam, foram ser tempo livre!
E nós,
Que nem pensamos em tê-lo,
ficamos perdidos num momento.
Que não é dia, nem hora, nem tempo.
É uma janela para o infinito
Onde ainda estamos,
onde o tempo voa, lá fora.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Na cama não se fala de políticas de desenvolvimento.

- Não consigo dormir.
- Então?
- O mundo, hoje, pareceu-me maior!
- E isso tira-te o sono?
- Claro que tira. É muito preocupante viver num mundo maior.
- Porque há-de ser isso?
- Porque num mundo em que não vês o limite do horizonte não podes construir estradas, pois não sabes se algum dia elas terão fim, e não se pode a andar infinitamente a espalhar asfalto no nada, é um desperdício de tempo e de recursos.
- Oh, mas as estradas não são as vias mais importantes. Enquanto duas almas pertencerem uma à outra, o caminho formar-se-á naturalmente, para além de qualquer limite.
- O que se passa hoje contigo? Duas almas? Como as nossas?
- Pode ser.. Vá, vira-te para o outro lado e dorme!