quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O Deus das Pequenas Coisas

"Quando Khubchand, o seu amado rafeiro de dezassete anos, cego, calvo e incontinente, decidiu encenar uma morte lenta e miserável, Estha cuidou dele durante essa provação final como se a sua própria vida dependesse disso. Nos últimos meses de vida, Khubchand, que tinha a melhor das intenções e a pior das bexigas, arrastava-se até ao janelo aberto na parte inferior da porta para lhe dar acesso ao quintal, empurrava-o com a cabeça e urinava tremulamente um líquido amarelo brilhante do lado de dentro. Depois, com a bexiga vazia e a consciência limpa, erguia para Estha os olhos verdes opacos que pareciam poças escumosas incrustadas no seu crânio grisalho, e cambaleava de regresso à sua almofada húmida, deixando marcas molhadas no soalho. Quando Khubchand estava a morrer na sua almofada, Estha podia ver a janela do quarto reflectida nos testículos lisos e púrpura do cão. E o céu mais além. E, uma vez, um pássaro cruzando-o em pleno voo. Para Estha - impregnado do cheiro de rosas vermelhas, ensanguetado pela lembrança de um homem despedaçado - o facto de algo tão frágil e tão insuportavelmente delicado ter sobrevivido, de lhe ter sido consentido existir, era um milagre. O voo de um pássaro reflectido nos testículos de um cão velho. Fazia-o sorrir com um sorriso aberto."

Arundhati Roy

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Aquece-me.

Corri para ti. Como tantas outras vezes. De braços bem abertos, esperando o calor que vulgarmente me envolvia. Por vezes esse calor arrepiava-me, fazia-me corar e fazia-te sorrir. Por vezes rias e eu corava mais ainda. Era bonito, tornava-nos pequeninos, como duas crianças que se arreliam depois de uma tarde de brincadeira, suados e plenos.
Quando era menina não abraçava ninguém. O calor nada me dizia. Era má. Gostava de ratos e de chuva. Nunca fui uma princesa grega, ria-me dessas moçoilas bem postas que se aqueciam no ouro e nas tintas brilhantes que as adornavam. Cresci no frio, e no frio me fiz Mulher.
Quando tu surgiste foste um fogo que me queimou de imediato. Senti a pele a rasgar, o sangue a afluir à carne crua que tocavas e espalhar-se no chão, deixando um rasto de loucura por onde passei desse dia em diante.
Ensinaste-me o calor. Contigo soube o que era o suor, quando na minha cama me achei sobre o imenso sal, que me banhava as costas nuas.
Essa dicotomia, gelo e calor unos em ti e em mim, fazia-me ansiar a tua presença, o teu toque.
Continuei a correr e, quando me lancei às chamas, caí. Não eras tu que lá estavas, e o gelo daquela pele cinzenta não me envolveu, deixando-me, simplesmente, cair.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Coelho Branco II

Todo e cada indivíduo deste planeta passa, nem que seja por breves instantes, a tormentosa dor de perder alguém. Perder para sempre alguém. Todos passam por aquelas habituées, as costumeiras questões que se resumem ao maldito: "Porquê?"
Não que valha coisa alguma; Deus, ou outro qualquer que se ocupe desta matéria, fará ouvidos moucos a tal desesperada interrogação e fica a dor petulante, saltitando e espezinhando os restos amargurados de quem fez a pergunta estúpida.
Todo o indivíduo sabe que, eventualmente, a hora mais certa da Humanidade chega. Mais; tem a certeza que a dor que a morte carrega consigo, para onde quer que vá, atinge todo e cada ser humano que caminhe, conscientemente, a passos largos, para o seu destino, o mais garantido que alguma vez terá.
Quando chega essa presença, essa dama malvada, porém exímia cumpridora de funções profissionais, a dor é tão grande, tão maior que a certeza, que não há espaço para as duas coabitarem no mesmo coraçãozito, que se torna tão apertado, sumido, acabando uma delas por ceder. E, normalmente, é a certeza. Porque a dor, essa fica para sempre.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Coelho Branco

Hoje senti o teu cheiro
Jamais o poderia esquecer.
Mas senti-lo
Entre as pelosidades nasais
Deixou-me zangada
Como quando me mordias
Quando me tratavas mal.
Deixou-me zangada
Por já não estares aqui
Por não te poder sentir
Não só nos pêlos do nariz
Mas sentir-te quente.
No meu peito,
nas minhas mãos.