segunda-feira, 18 de julho de 2011

e se.

"E se" é um analogismo vazio. Não existe. simplesmente não existe. Não há nenhum e se na vida. Esta vai correndo de uma forma só, daquela, aquela mesmo, e nenhuma outra! Supor que algo podia ter acontecido de outra forma é perder tempo precioso, num nada que se cria e ganha raízes no e se. O que acontece tem que acontecer, simplesmente. Mais que destino, sina, fado, coincidência... O que acontece agora (já!) é consequência do que aconteceu no momento anterior.
As borrachas podem ser muito enganadoras quando trazidas para esta problemática! Contudo, estas também só existem porque foram uma consequência de um acto. Simplesmente tinham que existir e aqui estão elas hoje, sempre prontas no auxílio das caligrafias ilegíveis.
E se está por isso banido do meu vocabulário, até uma qualquer entidade inventar uma máquina de viajar no tempo, económica, cómoda e segura.
Se for como a borracha, talvez tenha que esperar alguns séculos.

domingo, 17 de julho de 2011

O Guardador de Rebanhos

"Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar..."

Alberto Caeiro

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Insónias.

Constantemente me apaixono pela mão que me toca levemente no ombro. Se ficar lá poisada, encontro para tal mão um aro para o dedo anelar e um resto da vida e para sempre muito felizes.
Quando fecho os olhos, além da mão que teima em roçar ao de leve enquanto me distraio com os minutos do tempo, vejo-os num misto de sorrisos e olhares brilhantes. São os que passaram a correr e pouco ou nada ficaram que mais sorriem! Talvez pelo penar fatídico que suportaram quando as mãos se tocaram e se deram. Já os outros, só se lhes vê o olhar; brilhante de raiva, de ódio, de desamor. São esses que ainda percorrem o meu corpo com aquela mão, que outrora se apoiou no meu ombro. Essa mão procura-me como se aquela nunca tivesse sido eu. Riem-se do ser apaixonado, ao qual invadem o peito e profanam os mais secretos momentos da sua existência. Nada posso fazer, patético ser, espantalho caído, vazio e triste. Procuro abrir os olhos, já baços de lágrima.

Encaro o tecto alto; e ouço a sua voz ao longe, sem que mão alguma se poise no meu ombro. Contudo é essa voz que me ajuda a adormecer devagar, enquanto entoa uma melodia doce. Os olhos secam, e eu adormeço, apaixonada, uma vez mais.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Xadrez.

Tinhas nas tuas mãos a jogada seguinte. Bastava pensar um pouco, olhar bem fundo nos olhos que brilhavam diante de ti, encantados com a tua exímia postura. Um cavalheiro, um Homem de palavra, honesto, no entanto, como ela, um jogador.
O mais pequeno erro de cálculo poderia por em causa todo o pequeno império de vitórias morais que vieste a construir à custa de muito sofrimento e humilhação. Afinal, a cordialidade e o savoir faire serão sempre os grilos falantes que se agitam e estremecem no teu ombro, quando aspiras sair um bocadinho do eixo direitinho que está mesmo por baixo do teu nariz.
Contudo jogas. Nem era vício, pois o jogo ocasional nunca matou ninguém; embora o jogo seja sempre um jogo. Há sempre vitória e derrota. Perder é controverso; ganhar é bom. Recebe-se a vitória de braços bem abertos, peito inchado e sorriso bem rasgado. No fundo, todos sabem perder, mas ninguém sabe como perder.
E ali, era contra ela que jogavas... Ou jogarias com ela? Para todos os efeitos estava em ti a decisão, pois a jogada seguinte era tua! Era só pensar um pouco. Para a assistência não parecia assim tão difícil, enquanto os olhavam ávidos por resultados, por vitórias e derrotas. Até que simplesmente jogaste. Assim, como se tratasse de um movimento involuntário, moveste, com toda a tua certeza, aquela peça negra, e ela perdeu.

E tu ganhaste.

domingo, 10 de julho de 2011

Calótipo

Naquele dia
havia nuvens no céu
e o céu não era Azul.
Não era dia
Não era noite.
Era céu, somente.
A estrada desaparecia
E os seus pés roçavam o céu.
Ela continuava a caminhar
Mas já não sabia onde estava
Perdida no retrato do horizonte
Onde as nuvens
Passavam pontualmente
Num céu só mente,
Intenso,

Mediúnico.
Desejava para sempre
Aquele céu ali
Numa parede do infinito
Levemente inclinado,
Para a aconchegar no ombro nu
No seu ombro nu.

Adormeceria
E não saberia onde estava
Não saberia do ombro
Não sentiria a pele morena
Suada.
As nuvens eram mais densas
Agora mais frias.
Mas o céu, aquele céu
Não era noite
Não era dia.
Era céu.
Sem mente,

Só ela.

domingo, 3 de julho de 2011

Era uma vez uma grainha.

Era uma vez, bem antiga, um homem que cultivou uma grainha maldita, que se lhe tinha enfiado num dente. Cultivou; como quem diz atirou-a para o chão e deixou que a terra se revoltasse com chuvas e ventos e cobrisse a pobre semente, que já vivera aventuras mais que suficientes para a sua curta existência! Da grainha brotou um caulezito verdejante, suportado por uns tentáculos fininhos, que se prendiam à terra como se a ferrassem sedentos. O homem, que entretanto não fora muito longe, dormira um pouco, e espalhara mais um sem número de grainhas pelas imediações, reparou naquele pedacinho de verde e, como se escutasse uma voz longínqua, não lhe fez mal algum, dedicando-se a observar o movimento daquele estranho ser, tão pequeno. E daquele pequeno nada, surgiu um verdejante arbusto, com mais frutos e grainhas. O homem aprendeu, com o tempo, a cultivar. Gostava de ver crescer aqueles pauzinhos verdes, dos quais brotavam uns braços largos, que embalavam o vento que passava. Melhor de tudo; tirava-lhe aquele incómodo remexer de barriga, que se não fosse atendido o arrastaria para a total escuridão. Se o homem soubesse o que é ser bonito talvez achasse bonito aquele ser, aquele tempo de crescimento mansinho. Mas o homem só ouvia a sua barriga ruidosa e não tinha tempo mansinho para pensar no sol a bater nas folhas verdes. Apenas ansiava o fruto, e do fruto as grainhas, para cultivar mais plantinhas verdes.
Um dia descobriu que podia cultivar outras sementes. Só a carne não crescia do chão! Tudo o resto parecia alimentar-se do próprio caminho que os seus pés faziam; tinha todo o sentido continuar a caminhar e procurar mais sementes e nova terra. Por isso, já não o primeiro homem, mas outro que se lhe seguiu, achou terras distantes, e mais sementes para cultivar. Descobriu, ainda, que se deitasse à terra madeira e palha secas um abrigo cresceria. Decidiu cultivar a construção e o seu próprio esforço, que regados com o seu suor, ganhavam frutos muito rapidamente!
E assim, vários homens foram aprendendo a cultivar e a aperfeiçoar a técnica, com as suas próprias mãos e mais tarde com máquinas. Até que o correr do tempo nos trouxe a Ele. Ele que já não precisava de comida da terra, pois esta vinha embalada. Já não precisava de esforço, pois as casas eram regadas a dinheiro, juros e prestações. Já não usava mãos nem máquinas, só a sua própria mente para alcançar tudo o que outrora fora cultivado. Aparentemente, era um homem de negócios, nada tinha de agricultor ou entendido de plantações. Contudo, todos os dias cultivava o medo. O medo de andar na rua, de perder, de não ser respeitado, de não se encontrar no meio de outros viveiros e plantações de despeito. Esse medo dava uns frutos pequeninos, mas muito abundantes, que caíam directamente no quintal do seu amigo, que os sacudia para os filhos, que os levavam, na mochila, para a escola. Esses frutos têm umas grainhas quase invisíveis, mas suficientemente selvagens para se entranharam na terra, nos dias que passam, e para crescerem cada vez mais fortes. Os prados de flores dão lugar ao culto do medo e da descrença. O homem já sabe o que é ser bonito, mas já não o pode ver, nem quando o vento sopra e embate nas vigas de betão.
O homem ainda hoje não sabe cultivar uma flor.

sábado, 2 de julho de 2011

Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.

"A cozinha me transporta para distantes doçuras. Como se, no embaciado dos seus vapores, se fabricasse não o alimento, mas o próprio tempo. Foi naquele chão que inventei brinquedo e rabisquei os meus primeiros desenhos. Ali escutei falas e risos, ondulações de vestidos. Naquele lugar recebi os temperos do meu crescer."

Mia Couto